Cazuza

por Diogo M. Jr.





Alguns trechos de músicas de Cazuza envolvem comportamento e ações políticas. Tentaremos traduzir essas mensagens e seus efeitos ideológicos, abrangendo a interseção de sexo, raça e classe. Sua ideologia é apresentada na forma de poesia, e seu discurso é fundamentado no conflito.


Após a euforia causada pelo deslumbramento, a esperança exposta na campanha pelas Diretas Já, de grande apelo popular para a redemocratização do país, o fim da ditadura militar, o surgimento da AIDS, a consolidação de um cenário rock Brasil, a ilusão do Plano Cruzado e a conseqüente ressaca proporcionada pela frustração com o governo Sarney, e a falência dos países comunistas na Europa, que encerra a bipolaridade do mundo, em meio a esses acontecimentos Cazuza lança o álbum Ideologia, em que percebemos um artista preocupado com questões de maior cunho social e político, o que era raro em sua obra.

A seguir, a fim de elucidar alguns aspectos da vida do poeta, destacaremos trechos de seus sucessos e os interpretaremos estabelecendo uma possível relação de conflito, ideologia e comportamento com a sociedade vigente da época.

Boas Novas, a primeira música apresentada de sua autoria, mostra o poeta na luta contra o tempo, na vontade de expressar-se cada vez mais quanto fosse necessário, mesmo que o seu dizer não fosse relevante ou coerente, bobagens num papel, porém seu estilo poético é direto, severo, exaltado como frases endiabradas sem mel e dos balões incendiados que ao invés de cair do céu quer exteriorizar o seu discurso sem mais nem porquê. O poeta deseja falar, ciente de que expressa-se bem, perfeito para discursos longos, quer dirigir-se a alguém, não importa quem ou quantos. Entretanto, o seu falar é louco, talento pra loucura, seus discursos longos são carregados em ambigüidades sobre o que não fazer / que é que eu vou fazer?, e com vigor apresenta as novidades que traz num papel: eu vi a cara da morte / e ela estava viva, viva. A irracionalidade do discurso faz-se presente, a ambigüidade reaparece: como ver a cara da morte?, a morte além de possuir um rosto ainda estava viva?, e como não acreditando no que viu e nas próprias palavras diante desse horror, enfatiza o fato ao repetir a constatação de que ela estava viva. Seriam apenas bobagens, loucuras ou a consciência do poeta diante da sentença de morte que a AIDS representava naqueles tempos?

Codinome Beija-Flor, Faz Parte Do Meu Show e Todo Amor Que Houver Nessa Vida representam o núcleo romântico do álbum. É um Cazuza poético, lírico, meio Lupiscínio Rodrigues, meio Cartola, meio bossa nova, mais próximo da música popular brasileira da qual sempre desejou fazer parte. As duas primeiras são canções que representam esse poeta menos rock’n’roll, em paz, cantando baixo, em um trabalho que não cabia na antiga banda. Duas canções que tornaram-se modelo da música brasileira e que ajudaram a superar o preconceito que havia por parte da MPB em relação aos artistas surgidos no rock dos anos 80. Faz Parte Do Meu Show segue a melhor tradição bossa-novista, e Codinome Beija-Flor mostra em seu primeiro álbum solo, Exagerado, os novos rumos que sua música tomaria.

Só As Mães São Felizes, O Nosso Amor A Gente Inventa e Exagerado apresentam o artista resgatando os tempos de Barão Vermelho. Em autênticos rocks Cazuza conta sobre algumas situações típicas do seu dia a dia. Encontramos o amor hiperbólico em Exagerado: que por você eu largo tudo / vou mendigar, roubar, matar; o amor dor-de-corno de seu ídolo Lupiscínio Rodrigues em O Nosso Amor A Gente Inventa: o teu amor é uma mentira / que a minha vaidade quer; e a relação com as drogas em Só As Mães São Felizes, nem Melodia transvirado, e a alusão à cocaína em Exagerado: que por você eu largo tudo / carreira, dinheiro, canudo.

Exagerado retrata o viver do poeta, paixão cruel, desenfreada, é uma das composições que melhor apresenta a espontaneidade de Cazuza, de como era o seu cotidiano, de uma pessoa que curtia cada dia como se fosse o último, para cada novo amor tratava-o como se fosse infinito. Para ter o amor desejado o poeta transgride qualquer regra, pra mim é tudo ou nunca mais. Não há nada que o impeça de satisfazer o seu desejo. Ele nesta fase, se humilha, não come, não respira, mas abandona as drogas, e assume a condição hiperbólica: eu sou mesmo exagerado. É interessante notar que este desespero em nome do amor pressentia-se em uma composição anterior, Maior Abandonado, do Barão Vermelho, eu tô pedindo / a tua mão / e um pouquinho do braço / (...) / migalhas dormidas do teu pão / raspas e restos / me interessam / (...) / teu corpo com amor ou não, porém sem a mesma intensidade de Exagerado.

Ideologia, O Tempo Não Pára e a música Brasil, que não consta no álbum, representam o artista amadurecido, o poeta que após o contato com a morte e o pouco tempo de vida que lhe restava, viu-se diante de uma mudança temática em suas canções. Passou a ser consciente de sua posição de líder e formador de opinião, atento às feridas que assolavam o país, à crise de sua geração, à decepção com a redemocratização após a grande euforia e esperança que vinha desde as campanhas às "Diretas já", em 1984. Basicamente, esse trio de canções encaixou Cazuza num patamar acima dos seus contemporâneos. O jovem burguês da zona sul carioca passou a ser a voz mais coerente e esclarecida do rock brasileiro.

Ideologia é um retrato nu e cru do final dos anos 80. O poeta canta a angústia sofrida pelo fim próximo de algumas das principais bandeiras que a juventude clamava apaixonadamente desde as duas décadas anteriores. O desmoronamento dos países comunistas já se fazia sentir, o fiel apoio às ideologias de esquerda era posto em cheque, o meu partido / é um coração partido; o descrédito com as utopias era evidente, as ilusões estão todas perdidas. O sonho do Brasil democrático havia terminado, o poder trágico do capital e toda a indústria que o ampara havia vencido mais uma vez, os meus sonhos foram todos vendidos / tão barato que eu nem acredito, era o poeta em crise frente a um mundo em transição vendo seus pares entregando-se ao poder, aquele garoto que ia mudar o mundo.

Como vemos, na primeira estrofe da canção Cazuza generaliza questões políticas e sociais, porém na segunda estrofe parte para aquilo que o aflige diretamente, contudo isso não o afasta dos dramas de sua geração porque são questões globais. Utiliza o recurso metafórico para falar do problema com a AIDS, o meu tesão agora é risco de vida; a castração do trinômio sexo, drogas, e rock’n’roll, careta devido a sua incompletude. A vida marginal, desregrada, intensa que levava, rock’n’roll, não é mais possível, é a desreferencialização do poeta que toma conta de si, eu vou pagar a conta do analista / pra nunca mais ter que saber quem eu sou. Entretanto, a sua angústia, a sua inquietação faz com que procure respostas pelo cantar em versos, mas não é o que pressente entre a sua geração que está entregue, sem forças para reagir ao debater-se com a nova ordem que se apresenta, aquele garoto que ia mudar o mundo / agora assiste a tudo em cima do muro. O muro citado poderia ser uma referência ao muro de Berlim, símbolo da bipolaridade do mundo naquele período, e nada era pior à época que alguém ficasse em cima do muro em sua posição política. Porém é o que acontece com sua geração que está inerte, o desânimo determina o comportamento àqueles que não se deixaram levar pelo capital. Ciente da encruzilhada em que se encontra, o poeta revisita as suas referências atrás de explicações para encarar a situação vigente, contrária aos seus ideais, meus heróis morreram de overdose / meus inimigos estão no poder. No pensar causado pela incerteza, o poeta chama a atenção da sua geração para a crise que está instalada, que exige o debate crítico das idéias do passado que não atingiram plenamente os seus objetivos, e sua inquietação pressiona-o para uma mudança de postura diante da nova realidade, a não aceitar as regras do jogo, a não freqüentar as festas do ‘Grand Monde’ ou a ficar em cima do muro, que mantenha-se fiel às suas convicções, a não abandonar aquele garoto que ia mudar o mundo, e cobra-o uma nova consciência utópica: ideologia, eu quero uma pra viver.

Enquanto Ideologia apresenta o poeta inconformado, decepcionado com os antigos ideais, à mudança com os rumos que sua geração tomava e desacreditado com a política, a música O tempo não pára nos mostra toda a indignação e revolta do artista com a situação do seu país, com a elite dominante que arrasa o seu povo.

Nas duas primeiras estrofes de O tempo não pára, o poeta mostra-nos a sua condição excludente, de alguém que vivencia a luta do dia a dia. É interessante notar a relação destas. Enquanto a primeira parte de uma atitude absurda, uma relação ingênua, em que o poeta dispara contra o sol / minha metralhadora cheia de mágoas. O ato de disparar contra o sol a sua metralhadora de mágoas como se a mágoa fosse algo tangível e o sol alcançável, dá-nos noção da força, da revolta contida e acumulada, a ponto de explodir no poeta. A estrofe seguinte descreve algo mais próximo da realidade, com símbolos de sucesso social, retratado em pódio de chegada ou beijo de namorada. O vencer está presente, entretanto, está distante de suas possibilidades, pois o poeta é apenas mais um cara.

A despersonalização do eu em Eu sou um cara / Eu sou mais um cara aproxima o poeta do cidadão comum, seu ouvinte, que assim como ele, permanece à margem da sociedade. Embora seja mais um cara, esta condição não impede que o autor seja observador e crítico da sua situação, identifique o que o oprime e comece a demonstrar ao opressor a sua indignação. O poeta está atento, revoltado, porém não desiste, não se entrega, insiste em sobreviver apesar das adversidades que o poder, oculto no outro, impõe: se você achar que estou derrotado. Pode-se interpretar esse trecho como uma referência ao fato de ser portador do vírus da AIDS. Na época, Cazuza ainda não havia assumido publicamente a sua doença apesar dos fortes rumores que haviam, da visível degradação física e das constantes internações que era obrigado a se submeter.

A marginalidade está inserida explicitamente nos versos seguintes, apresentam-se em forma de luta, o não entregar-se é o que o motiva a viver, e o conseqüente incômodo que a insistência de sua presença traz para quem detém o poder, adicionado a feroz crítica a quem o subjuga e critica o assistencialismo proposto pela elite, em algo que serve para aliviar a consciência e perpetuar a miséria, é desmascarado em meio a revolta: dias sim, dias não / eu vou sobrevivendo sem um arranhão / da caridade de quem me detesta. A desilusão é tanta, as dificuldades muitas, que diz: eu não tenho data pra comemorar / às vezes os meus dias são de par em par. A asfixia imposta pelo poder dominante o deixa no limite do desespero: nas noites de frio é melhor nem nascer / nas de calor se escolhe: é matar ou morrer. E demonstra a condição excludente a que boa parte da sociedade é sujeitada ao afirmar que assim nos tornamos brasileiros.

Piscinas e ratos, idéias e fatos, essas dualidades em um discurso direto, objetivo e claro nos mostram a consciência do poeta em identificar o motivo de sua revolta. A luxúria na piscina relacionada a podridão, ratos no caso: a tua piscina tá cheia de ratos. Em idéias e fatos a relação é descrita como a descrença no discurso das elites: as suas idéias não correspondem aos fatos, o que o leva argumentar que nada muda, sendo exposta em o futuro repetir o passado e um museu de grandes novidades. Aqui há um jogo de palavras com a relação temporal, a questão de o tempo não pára, em que o discurso dominante tenta manter a situação como está. O futuro que repete o passado passa a impressão de que o tempo está parado, assim como o conceito de museu, que conserva o que foi novidade no passado, o que é incorporado pelo sistema. Daí o poeta exclamar que o tempo não pára, em que o não parar quer apresentar uma nova versão para os fatos, uma releitura do que acontece. É uma tentativa de fazer-se ouvir e escancarar a sua condição com seu discurso, e o conseqüente descrédito no discurso da elite, que não o convence mais, pois evapora-se na sua irrealização.

Contudo, o poder reage e tenta menosprezar, desprezar a voz excludente do poeta ao tratá-lo, de forma pejorativa, de ladrão, bicha e maconheiro, na tentativa de mostrar que a sua revolta não o libertará da marginalidade a qual sempre esteve, não conseguirá mudar aquilo que sempre existiu. Assim, o poder procura demonstrar que esse tipo de arte, contestadora, politizada e rebelde é ruim, forçando-o a rebater com intensidade, incisivos e indignados versos: transformam um país inteiro num puteiro / pois assim nos tornamos brasileiros.

As apresentações de O Tempo Não Pára possuíam forte carga emocional, em razão do já avançado estado de saúde de Cazuza. Havia a sensação entre os que vivenciaram a época de que estavam diante do último canto do poeta, de que algo estava perto do fim, uma era próxima de terminar, que o expoente maior daquela geração estava perdendo a batalha da vida. Porém a degradação física acompanhou o seu momento maior de criação.

O show O Tempo Não Pára representa o momento máximo de um artista que corria desesperadamente contra o tempo, tentando vencê-lo de qualquer maneira. Cazuza consolidou-se como a principal cabeça pensante do rock dos anos 80, um dos grandes nomes do período que, com sua bela poesia e igual revolta, soube retratar os hábitos, as angústias, os anseios, a esperança e o descrédito de um país recém saído de uma cruel ditadura.
 Torna-se interessante notar como esse espetáculo, passados tantos anos, ainda atinge questões pertinentes à contemporaneidade.

2 comentários:

  1. Eu não sou muito fã do Cazuza, mas certamente ele foi um dos grandes do cenário musical dos anos 80. O texto faz uma interessante panorâmica pela carreira/vida do cantor. Bacana!

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  2. adorei o texto, o cazuza era demais

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